Saidinhas temporárias de presidiários refletem a impunidade permanente

Benefício que será concedido a 33 mil presos do sistema carcerário paulista traz insegurança fora e, devido ao coronavírus, dentro das cadeias.

Depois de um ano sem nenhum tipo de regalia, no que se refere às usuais “saidinhas” de presos de seu encarceramento em datas festivas, com retorno pré-determinado ao presídio, neste ano foi concedida a saída temporária de mais de 33 mil detentos em São Paulo. O benefício de Natal, em 2020, é o único do ano, em razão da pandemia do Covid-19. E aí eu me pergunto: o que essa saída do sistema carcerário pode acarretar para esses beneficiados, seus familiares e companheiros de cela, ao voltarem às cadeias? E a questão da impunidade, como fica? Para a maioria deles, acaba em pizza, nas ceias de Natal e de Ano Novo e nos números assustadores, que se repetem todos os anos, de condenados que se aproveitam desse momento para não retornar à detenção. Não bastando o clima de ansiedade provocado por uma pandemia, exigimos uma resposta à questão de quantos criminosos permanecerão no meio de nós. Diante desse cenário, é importante salientar a diferença entre as “saidinhas temporárias”, com retorno programado aos presídios, e o indulto de Natal. No caso das saídas temporárias, segundo o professor de direito penal da Universidade Presbiteriana Mackenzie, Edson Knippel, representam um voto de confiança para a reabilitação dos presos. Por outro lado, Rogério Sanches Cunha, promotor de Justiça, aponta que é “alarmante” a quantidade de presos que descumprem esse benefício e não retornam às prisões. Ele afirma que a questão não está no fato de proibir essas saídas, mas sim avaliar o grau de periculosidade de cada detento para conceder a regalia.

Nos últimos quatro anos, no estado de São Paulo, foram 24.441 presos que não voltaram para as grades, sendo que, de 2015 a 2019, 637.490 presidiários foram beneficiados por saídas temporárias, em diferentes datas comemorativas. Assim como 51 desses detentos morreram durante sua ausência do cárcere. De acordo com a Secretaria de Administração Penitenciária (SAP), esse benefício é atribuído a presos que se encontram em regime semiaberto, apresentam bom comportamento e não cometeram crime hediondo. Ao se falar de indulto de Natal, trata-se de um tipo de perdão concedido aos condenados por certos crimes, tornando extintas suas penas. Com isso, o preso não retorna ao estabelecimento prisional, por ter cumprido o total da pena. É comum que o presidente da República conceda um indulto natalino coletivo, em épocas natalinas, permitido por lei, de acordo com o artigo 84, XII da Constituição Federal. Mas isso não é o que ocorrerá dentro de uma semana, com as “saidinhas” de presos em São Paulo. É uma medida que traz insegurança para quem está fora e dentro das cadeias, onde pode haver um aumento significativo de casos de coronavírus entre os detentos, além da ampliação da violência nas cidades. Essa saída temporária foi autorizada pela Justiça para ter início no dia 22 de dezembro, com retorno previsto para 5 de janeiro de 2021. E, novamente, as contradições que pairam com essas medidas, em que promotores dessa mesma “Justiça”, em São Paulo, agora se dizem preocupados com a alta no número de infectados pela Covid-19 no estado.

Por essa razão, de acordo com o promotor Paulo José de Palma, foi enviado um ofício, questionando as medidas a serem tomadas na volta desses presos ao sistema carcerário, repetindo as incongruências desses atos, tomados sem precaução, pondo em risco diferentes populações e acenando, mais uma vez, para a impunidade que habita em nossa sociedade. Como diz o pensador Leon Frejda Szklarowsky, “a impunidade é a matriz e a geratriz de novos e insensatos acontecimentos e o desmoronamento do que ainda resta de bom na alma humana”. Ideia essa que complementa a do escritor José de Alencar, quando ele diz: “Queremos acabar com a impunidade, por isso devemos encorajar as instituições que combatem o crime dentro da lei”. Reflexões que deveriam existir não só em momentos de caos como este por qual estamos atravessando, mas como um caminho para que se possa reduzir essa impunidade desenfreada, a que assistimos de camarote e que nos torna vulneráveis diante do não fazer, do não precaver, do não assumir responsabilidades perante momentos conflitantes como este, da saída temporária de presos com diferentes condenações.

Assim como o promotor Paulo de Palma, nós, brasileiros, tememos as consequências que possam advir dessa “saidinha” de Natal, uma apologia à impunidade e à insegurança, para uma sociedade cansada de privilégios trocados. Na verdade, o olhar dos apoiadores dessa medida deveria estar voltado a uma reformulação do sistema carcerário, desde suas instalações precárias até infraestruturas adequadas a um processo de reabilitação dos presos para sua reinserção na sociedade. Embora seja um direito sedimentado pela Constituição Federal, a saída de Natal, hoje, acaba se tornando uma questão de saúde pública. Assim como o recente pedido à Justiça, por parte do promotor Lindson Gimenes de Almeida, pela proibição das saídas temporárias. Da mesma forma, para o infectologista Renato Grinbaum, que considera essa manobra um risco. Em contrapartida, a Secretaria de Administração Penitenciária fala em orientação para cuidados de higiene e distanciamento entre os presos. Contudo, até que as autoridades mostrem competência para garantir a segurança da população e que, para tanto, haja uma reformulação do sistema carcerário no Brasil, esse tipo de benefício deve ser afastado. Que Deus nos guarde.

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